O emoji que cada um merece


A palavra do ano de 2016 foi pós-verdade. É que todo ano, o Departamento de Dicionário da Universidade de Oxford elege um termo que tenha se destacado nas grandes publicações, e a expressão pós-verdade, empregada desde os anos noventa, teve sua utilização aumentada em dois mil por cento no ano passado. Em 2015, em vez de uma palavra, escolheram um emoji, aquela carinha amarela que chora de tanto rir.

            
Pós-verdade não é uma mentirinha qualquer. É tentar influenciar a opinião pública, apelando para emoções, ideologias e crenças, e não com dados objetivos, como fizeram na campanha para Presidente dos Estados Unidos. Que políticos, para ganhar votos, abusam de factoides e promessas que não pretendem cumprir, isso todo mundo sabe. Mas a campanha de Donald Trump ultrapassou todos os limites. Espalharam nas redes sociais que Barack Obama era fundador do Estado Islâmico, e que o Papa apoiava a candidatura de Trump, o que não deveria ser levado a sério por quem tem um pingo de juízo. Mesmo assim, ele se deu bem na eleição.
            
A vitória da estratégia eleitoral de Donald Trump poderia nos levar a crer que a mentira vale a pena, quando a alma, grande ou pequena, anseia chegar ao poder a qualquer custo, e que os ingênuos são vítimas indefesas da manipulação pelas redes sociais. Quando se trata de pós-verdade, porém, as coisas não são tão simples assim.
            
Por um lado, a pós-verdade desinforma e deforma,  por outro, alimenta-se da frustração com as instituições tradicionais, ativa preconceitos incubados, radicaliza conflitos preexistentes, transforma divergentes em extremistas. E as redes sociais, com seus algoritmos facilitadores das panelinhas ideológicas, tornam-se um tecido propício para replicação da pós-verdade. Num meio ambiente em que o sucesso se mede por likes e seguidores virtuais, e grande parte do poder está nas mãos de influenciadores digitais, não é incomum que as opiniões sejam contaminadas por fake news, fazendo a pós-verdade viralizar.
            
Para se proteger dos males causados pela pós-verdade, nada melhor que a vacina do discernimento, que está ao alcance de todos. Se todo ser humano é animal racional, o uso da razão é o bem mais democrático que pode existir. Não é preciso ser filósofo para raciocinar, observando pros e contras antes de tomar uma decisão, nem ser cientista, para saber que joio não é trigo. Pelo discernimento, cada qual pode se imunizar contra a ação daqueles que, como diria Chomsky, tentam provocar um curto circuito no senso crítico.
            
Mas nem sempre a pessoa dispõe de critérios seguros para ter certeza de que aquilo que reluz não é ouro. O photoshop, por exemplo, tem sido acusado de promover uma espécie de estelionato estético, que pode levar pessoas à busca de uma beleza inatingível, por vezes com sacrifício da saúde do corpo, quando não da sanidade mental. Não é à toa que a França acabou de aprovar uma lei, obrigando que fotos publicitárias com imagens de modelos, alteradas por programas digitais, tenham uma tarja com a advertência “fotografia retocada”, nem que uma celebridade tenha perdido mais de cem mil seguidores no instagram, quando descobriram suas celulites, flagradas por um paparazzi, bem diferentes das imagens retocadas e publicadas por ela em seu perfil.
            
Também não é simples distinguir o falso do verdadeiro em tempos não só de pós-verdade, mas de pós-modernidade e pós-moralidade. De um lado, tanta coisa misturada, como ciência e esoterismo, sacramento e amuleto. Do outro, desentrelaçada, como moral sem dever e cristianismo sem cruz. Tem hora que a gente é que se sente em pecado, quando não se amolda a práticas religiosas que mais parecem um photoshop da fé, na qual o Cordeiro de Deus não tira pecado do mundo, pois parece até que, nesse mundo de meu Deus, pecado já não há mais.

            
Voltando, porém, à questão da pós-verdade em tempo de eleição, o ano que vem promete desafiar o discernimento dos brasileiros. Não é preciso ser profeta para prever que os discursos dos candidatos hão de ser muito parecidos, e as estratégias de campanha, repletas de factoides e promessas irrealizáveis. Caberá ao eleitor revestir-se com a armadura do discernimento. Quem sabe, assim, o emoji do ano seguinte lhe trará algum alento. Alfim, cada um há de ter o emoji que merece.

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