Reza
a lenda – ou a história, que não deixa de ter suas lendas – que os livros da
biblioteca de Alexandria foram queimados a mando do Califa Omar. Utilizado para
aquecer a água em quatro mil banhos públicos da cidade, mesmo assim demorou
seis meses para o acervo ser queimado. Mais do que o material inflamável de que
eram feitos os livros, o que alimentou a queima das obras foi um combustível
retórico. Conta-se que depois de dominar
o Egito, o comandante daquela conquista, que se tornou governador provincial,
escreveu para o Califa, perguntando o que fazer com os livros, tendo recebido a
seguinte resposta: se os livros estão de acordo com o Alcorão, não precisamos
deles, pois estão sobrando; se não estão de acordo, então enunciam falsidades.
Num caso ou noutro, a melhor solução é destruí-los. Costuma-se recontar essa
história, como exemplo de atitude dogmática.
Atitude
dogmática não se confunde com dogma. O sentido deste, na teologia católica,
desenvolveu-se principalmente após o Concílio de Trento, que o definiu como
verdade de fé, que compreende dois aspectos: um elemento material, que é a
substância contida na própria revelação, e um formal, o juízo solene proclamado
pela autoridade da Igreja sobre esse conteúdo. É possível, porém, uma atitude
não dogmática em relação ao dogma, sem negar o que professamos em nosso credo.
Se
for pensado como tabu ou com supervalorização do juízo solene, próprio de uma
formulação jurídica, em detrimento do conteúdo de fé, o dogma perde muito da
vitalidade que deve envolver o encontro entre Deus e o ser humano. Como adverte
um conhecido dicionário de Mariologia, o
dogma hoje é acusado de “negar a liberdade, de ser irracional ou até
demasiadamente racional, de aprisionar a alegre mensagem da salvação nos rígidos
conceitos da razão ou em uma linguagem que se presume válida para todos os
tempos, mas que de fato não o é.” Além
disso, a atitude dogmática no trato do dogma dificulta a abertura da Igreja
para o mundo, e o diálogo entre os membros das diversas igrejas cristãs.
Atitude
dogmática e falta de diálogo não são pecados apenas de fiéis de uma igreja.
Cientistas e filósofos podem se tornar tão intolerantes quanto fanáticos
religiosos. Alguns, com a pretensão de dar certificado de garantia da verdade a
seus discursos, não enxergam que, no plano dos juízos humanos, a verdade não é
posse segura e definitiva do saber, mas apenas aquilo a que o conhecimento
aspira. Outros, inflamados pelo sectarismo ideológico, só exaltam e respeitam
as diferenças quando estas lhes agradam, e muitas vezes transformam o direito
de dissentir em incitação ao ódio contra quem não se ajoelha diante dos juízos
que eles proclamam solenemente, como anátemas lançados aos que pensam de modo
diferente.
O
mundo do direito é pródigo em dogmas.
Professar que todo poder vem do povo ou que todos são iguais perante a
lei fazem parte de um credo laico, importante para o funcionamento do sistema
jurídico, mas que muitas vezes não tem correspondência com o mundo real. Mas se
até as verdades de fé não precisam ser encaradas com atitude dogmática, muito
menos as do direito merecem ser sacralizadas ou impermeabilizadas ao pensamento
crítico.
A
certeza de que os dogmas religiosos são verdades de fé não nos torna cegos para
o fato de que suas formulações são expressões humanas, como tais incompletas e
relativas. Essa compreensão, em vez diminuir, enriquece o seu valor, ao
direcionar o dogma para o mistério. Nessa perspectiva, o dogma deixa de ser
simples juízo solene que aparta o crente do herege, para representar o caminho
rumo a única Verdade, que é Deus.
Respeitar
o dogma, mas ir além de sua formulação, pode ser um antídoto para os efeitos
maléficos da atitude dogmática em qualquer área da vida. Quem sabe assim,
ninguém mais tenha a tentação não só de incinerar obras que considera
supérfluas ou falsas, mas de chamuscar o próximo com as línguas de fogo do
sectarismo ideológico, ou reduzi-lo a cinzas na fogueira da intolerância, só
porque o outro, que não faz parte da mesma igrejinha, seja ela religiosa,
política ou acadêmica, não comunga do mesmo modelo de aspiração pela verdade.
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