Descendo as escadas

Se é verdade que guardamos na memória o que vivemos somente a partir dos quatro anos de idade, minha amnésia infantil me faz lembrar que, quando conheci meu pai, ele já tinha mais de quarenta. Bem humorado, ele gostava de dizer, depois que fez cinquenta, que já estava descendo as escadas da vida. E era do baú do passado, bem maior do que seria a arca do seu futuro, que ele tirava lições e histórias bonitas.


Eu ficava admirado quando ele falava do Lunário Perpétuo, que lhe despertara a curiosidade de menino. Naquelas páginas, os leitores buscavam respostas para os mais variados problemas, desde os cálculos das luas até como engordar galinhas. Talvez por isso, ainda hoje, o Lunário é como um livro encantado, fonte perene de sabedoria, a ensinar, entre tantas coisas, que o tempo é mercê de Deus, e a esperança, o pão da pobreza.


Mesmo se anunciando como prognóstico perpétuo para todos os reinos e províncias, o Lunário, como produto de seu tempo, não deixa de ser a perpetuação do saber de uma época. Diz que são cinco as idades do homem, segundo Galeno. A Infância, de qualidade quente e úmida, que vai do nascimento aos quatorze anos; a Adolescência, quente e seca, dos quatorze aos vinte e cinco; Juventude ou Mocidade, “mui temperada ao princípio”, dos vinte e cinco aos quarenta; Virilidade constante, “algum tanto fria e seca”, até os cinquenta e cinco, quando se entra na Velhice, mais fria e excessivamente seca, até o final da vida.

Não admira que, nos tempos do Lunário, quem ultrapassasse os cinquenta fosse considerado idoso. Se eu mesmo, na imaturidade quente e seca, via meu pai como um velho, para mais tarde me dar conta que, ao morrer com sessenta e seis, ele desceu muito cedo as escadas. E hoje, quando estou mais velho do que ele, quando dizia ter começado a descê-las, também tento fazer da caminhada da vida meu verdadeiro tesouro, de onde possa tirar coisas novas e velhas, tal qual o escriba instruído no Reino, de que fala a Escritura.

Nas duas primeiras idades referidas por Galeno, o mundo de meu pai sofreu os abalos da Grande Depressão e da Segunda Grande Guerra. Os relatos desta última chegavam pelo jornal trazido no trem, para leitura compartilhada com uma plateia ansiosa. Anos mais tarde, foram registrados nos fascículos encadernados, de que tanto ele gostava, e que hoje guardo comigo. O Brasil daquele tempo era do Estado Novo, do governo “pai dos pobres, mãe dos ricos,” país que sofreu tantos abalos, ao longo da existência de meu pai que, apesar de enfrentar muitas dificuldades, dizia que só deixaria esta vida porque não havia outro jeito, tendo partido sem abrir mão da alegria e da esperança.

Minha infância também se deu em tempos de repressão a direitos políticos e avanços nos sociais, paradoxo observado por Murilo de Carvalho, ao analisar o tortuoso caminho da cidadania no Brasil. Na TV em preto e branco – não em nossa casa, que não a tínhamos, pois ainda éramos televizinhos –, vimos as inacreditáveis pegadas do homem no solo lunar. Diante dela, vibramos com a conquista do mundo pela seleção canarinho. Vivíamos anos de chumbo e guerra fria, embalados no ufanismo do milagre brasileiro.

Transformações bem maiores ocorreram no meu Brasil da adolescência e mocidade. Clamamos por Diretas Já, para depois prantearmos um Presidente eleito, que não chegou a governar. Sofremos o rosário de crises, embrulhadas em desastrosos pacotes econômicos. Foram tempos de overnight, inflação a mais de mil e confisco de poupança. As urnas consagraram um dito caçador de marajás e outro, pai do Plano Real. E quando achávamos ter hasteado no Planalto a bandeira da ética na política, a corrupção sistêmica maculou sonhos republicanos, como a dizer que a árvore contaminada dos governos de cooptação, financiados por dinheiro espúrio, só pode dar frutos podres, sem qualquer acepção de cor ou ideologia partidárias, e que não há outras saídas.

Tempos confusos, estes nossos. Mas o tesouro do passado pode nos servir de lição. Aprender com nossos erros e fracassos. Pensar que nosso destino não deve ser colocado nas mãos de supremacistas de qualquer ordem ou demagogos mambembes, que pretendem se agarrar ao poder como a uma tábua para salvação das próprias peles. Nada se conquista de braços cruzados ou como
dádiva de caudilhos travestidos de salvadores da pátria. Digo isso sem maiores pretensões, nem mérito outro a não ser de alguém que, a exemplo de meu pai, acredita ser importante compartilhar as pequenas riquezas do tesouro da vida, e tenta descer com alegria e esperança as suas escadas.

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