Comemorávamos
o Ano Internacional da Criança. Entre as comemorações, a Liga da Defesa
Nacional (LDN) realizou a Caravana de Integração Nacional. A Liga, que até
então eu nem sabia que existia, tinha sido fundada em 1916 por Olavo Bilac. Seu
estatuto listava, entre as finalidades, manter a ideia de coesão nacional,
propagar a educação popular, difundir o amor à justiça e o culto ao
patriotismo. E naquele ano, a LDN achou por bem premiar um “estudante símbolo”
de cada cidade do Brasil, de preferência de escola pública e com maior média de
aprovação final no ano anterior, com uma viagem de estudos a Brasília. O tal
estudante símbolo acabou sendo eu, e a viagem de estudos foi, na verdade,
para prestigiar a posse do Presidente Figueiredo.
Quando
soube da novidade, minha mãe ficou preocupada. Eu tinha quase dezesseis anos,
mas nunca viajado para tão longe. No ônibus, conosco, iria o professor Balbino,
que nos ensinava história na secção do Colégio Estadual. Conhecido por sua
visão crítica, sua presença na caravana seria um contraponto a eventual
ufanismo propagado no evento. Mas a preocupação de minha mãe, naquela hora, não
era com patriotismo nem segurança nacional, e sim com a segurança do filho. Por
isso, quando Balbino foi lá em casa, falar sobre a viagem, ela o submeteu quase
a um interrogatório.
Saímos
de João Pessoa na sexta depois do jantar e chegamos a Brasília na segunda à
noite. Na quinta, dia da posse, ficamos na Esplanada, acenando bandeiras e vendo,
de longe, o Presidente saudar os populares do parlatório. À tarde, num show com
artistas da TV e cantores, o general Presidente falou da confiança depositada
nos jovens de todo o Brasil, ali representados. A volta para casa, no dia
seguinte, foi depois do almoço e das condecorações. Cada um recebeu uma medalha
da LDN. Cheguei em casa no final da manhã da segunda. Trazia comigo muitas
lembranças do que meus olhos tinham contemplado, especialmente do céu de
Brasília, inspiração de músicos e poetas, que alguns defendem seja tombado como
paisagem cultural brasileira. Era 19 de março de 1979, dia de São José e do
aniversário de minha irmã.
Naquele
ano, o assunto do momento era a abertura política. Na posse, o Presidente fez
questão de enfatizar o propósito inabalável de fazer do país uma democracia. A
gente sabia, porém, que não se faz democracia por decreto, e que aquele
tempo, como diz a canção de Chico, era uma página infeliz da nossa história.
Nas sombras do poder autoritário, a pátria mãe era subtraída em
tenebrosas transações. Mas apesar de distraída, ela via a mobilização de seus
filhos para iluminar o caminho de volta à normalidade democrática. A Lei da
Anistia, que sempre me lembra Simone cantando “tô voltando”, foi aprovada já no
primeiro ano do mandato do general Presidente.
De
lá para cá outras luzes se acenderam. Temos hoje uma democracia que se constrói
com negociações e conflitos, punhos cerrados e apertos de mão. Como reino
imperfeitamente humano, dela não se pode esperar que seja um mundo apenas de
claridades, pois a humana condição é feita de sombras e luzes. Mas nesse mundo
imperfeito, as relações entre os filhos da pátria precisa de uma pauta mínima
de convivência, com respeito às diferenças, com formas de resolver conflitos
dentro da normalidade democrática. Nesta, se a lei não é o “pau que dá em Chico
e em Francisco”, pois hoje nem no gato atiramos o pau, ela deve ser a soberana
de um império em que não se admite ninguém acima dela.
Passados
quase quarenta anos da caravana, e viradas algumas páginas infelizes de nossa
história, ainda pairam nuvens carregadas nos céus do Planalto, que a todos nós
envolve. Tenebrosas transações continuam a ser feitas, subtraindo nossa pátria
mãe, talvez menos distraída. Como um dos seus filhos, penso que não é bom
para ninguém transformar os conflitos saudáveis de um ambiente democrático em
ódio visceral por quem pensa diferente. Não é boa para ninguém a polarização
maniqueísta e personalista que vivemos ultimamente. De um lado quem se comporta
como devoto de um semideus, do outro, quem personifica a justiça numa espécie
de vingador de toga. No reino imperfeito da democracia convivem as mais
diversas formas de agir e de pensar, até de jararacas de distintas colorações,
e de lobos em peles de cordeiro, de ideologias várias. Mas não deve ser um
reino do vale-tudo, de fins justificando meios, do salve-se quem puder. Nela o
importante é que a lei esteja acima de todos, não para esmagar a cabeça das
jararacas, mas para tratá-las como merecem ser tratadas, tampouco para arrancar
a pele dos lobos, mas retirar-lhes o disfarce de cordeiro. Que tenebrosas
transações saiam das sombras para a luz, e nada se resolva com violência ou
arbitrariedade. Isto sim, pode aperfeiçoar nossa democracia, que embora jamais
chegue a ser de um azul sem manchas como o céu do Planalto Central, é a única
que temos, e é dela que devemos cuidar.
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