Retrato em preto e branco



Com Deus me deito, com Deus me levanto,
Com a graça de Deus e do Espírito Santo,
Se dormir muito, acordai-me,
Se eu morrer, alumiai-me
Com as tochas da Vossa Trindade
Na mansão da Eternidade.

Era assim que os brancos, na casa-grande, e os negros, na senzala, rezavam ao deitar-se, como informa Gilberto Freyre, no clássico Casa Grande e Senzala. No livro, o autor pinta o retrato da colonização portuguesa em nosso território, no qual foi plasmada uma sociedade agrária, híbrida e escravocrata. Também explica, entre outras coisas, que no Brasil-Colônia, as famílias costumavam casar muito cedo as filhas. As sinhazinhas geralmente juravam fidelidade aos pés do altar aos doze, treze ou quatorze anos de idade. Muitas delas morriam de parto. Outras tantas se tornavam mães ainda meninas, parindo um filho atrás do outro. Por isso, dependiam das mucamas para lhes servir como amas-de-leite, costume que não decorria de mero capricho, mas da inexperiência e necessidade dessas jovens senhoras.


Não admira, pois, que se estabelecesse entre os filhos das brancas e a ama escrava uma relação que encerra, a um só tempo, um misto de espoliação e afeto. Por um lado, a ama-de-leite era uma peça de propriedade do senhor de escravos; por outro, era a mãe comum de meninos brancos e negros, que lhe sugavam as tetas e lhe pediam a bênção, costume tão usual quanto a oração comum que negros e brancos faziam antes de dormir.


Luiz Felipe Alencastro resume bem esse paradoxo. Ao comentar a fotografia de capa do livro História da Vida Privada, tirada no Recife por volta de 1860, em que aparece uma mucama, vestida elegantemente, ao lado de um menino branco, filho de seus senhores, aquele autor explica que na época era necessário esperar pelo menos um minuto e meio para se fazer uma foto. Por isso, os pais preferiam levar os filhos para serem fotografados de manhã, bem cedo, aproveitando o momento em que as crianças estavam ainda sonolentas e menos inquietas.


O menino, informa Alencastro, veio acompanhado dos pais e da mucama. Esta trajava a roupa, o colar e o broche emprestados da sua senhora. Talvez por cansaço, o garoto inclinou-se, apoiando-se na escrava. Segurou-a com as mãos:


“Conhecia bem o cheiro dela, sua pele, seu calor. Fora no vulto da ama, ao lado do berço ou colado a ele nas horas diurnas e noturnas da amamentação, que seus olhos de bebê haviam se fixado e começado a enxergar o mundo. Por isso ele invadiu o espaço dela: ela era coisa sua, por amor e por direito de propriedade.”


A mucama, ao contrário, não se moveu. Estava presa tanto à imagem que os seus senhores desejavam fixar, quanto aos gestos codificados de seu estatuto. Sua mão direita, ao lado do menino, aparece fechada no centro da foto, na altura do ventre, de onde nascera outra criança, da mesma idade do filho de seus senhores.


Prosseguindo no comentário, Alencastro diz que o mistério daquela foto, feita há tanto tempo, chega até nós, como imagem de uma união aparentemente absurda, porém admitida, estabelecida no amor presente e na violência pregressa, violência essa que dilacerou a alma da escrava, abrindo dentro dela o espaço afetivo invadido pelo filho do seu senhor. E conclui magistralmente: “Quase todo o Brasil cabe nessa foto.”

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