Dona Flor e a ciência do direito



Quem não se lembra do sucesso do filme Dona Flor e seus dois maridos? Estávamos em setenta e seis, e eu, adolescente ─ hoje posso confessar sem tanto constrangimento ─ vez por outra tentava driblar os fiscais do cinema para assistir aos filmes impróprios para menores de dezoito anos, para desfrutar do prazer proibido de cenas picantes para a época, mas que hoje poderiam ser exibidas na novela das oito. José Wilker, encarnando o porreta Vadinho, primeiro marido de Dona Flor, tão diferente do metódico Teodoro, para quem até o sexo tinha dia marcado, sempre depois do pedido formal de permissão ─ no meio jurídico seria um data vênia ─ e de apagar das luzes, tendo a vida regida pelo lema “um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar". Sem falar nos encantos de Dona Flor, a Dona Flor de Jorge Amado, a Dona Flor de Sônia Braga. E o final do filme, então? Ela tão faceira, braços dados com os dois maridos ─ Vadinho, vindo do além tão nu como nasceu ─ todos felizes a caminhar pelas ruas de Salvador.

Há quem veja em Vadinho e Teodoro metáforas para o id e o superego; Dona Flor simbolizaria o equilíbrio entre os dois. Mas qual do dois maridos de Dona Flor é o vivo e qual o morto?
Luiz Alberto Warat, no livro A ciência jurídica e seus dois maridos, afirma que o segundo marido de Dona Flor estava mais morto que o primeiro, e que a Dona Flor por ele redescoberta tem um imaginário de desejos que aspiram à liberdade, abominando toda regra institucionalizada, e fugindo de casamentos regrados em que se é obrigado a fazer amor com um cadáver. E diz tudo isso para fazer uma analogia com a ciência em geral, e com a do direito, em particular, visto que, para aquele autor, a civilização ocidental edificou o conhecimento científico como castração, fazendo o possível para nos distanciar de uma ciência alquímica da transformação.

Essa idéia me traz à mente uma história contada por Rubem Alves: um colega, aposentado com todos os títulos acadêmicos possíveis, entra no escritório de Rubem e diz estar escrevendo um livro sobre o que aprendeu na vida. Porém, ao ouvir de outros que o livro não serve por não ser científico, pergunta indignado ao amigo: “Rubão: o que é científico?” E a partir desse questionamento, segue-se uma provocante reflexão de filosofia da ciência: quem inventou o alfabeto não era analfabeto? Quem filosofou por primeiro precisou de referência bibliográfica? Só é real o que se pega com as redes metodológicas da ciência?

No estudo do direito, também é importante refletir sobre questões como essas. Pois para se compreender o direito como algo dinâmico e não estático, como verbo e não como substantivo, não se pode ficar o tempo todo repetindo um saber burocratizado e dogmatizado, papagaiando doutrinadores sem uma análise mais profunda de seus textos ─ a propósito, será mera coincidência que na ciência jurídica, mais do que em outras ciências, cientista seja sinônimo de doutrinador?. Em vez disso, penso ser importante examinar a experiência jurídica com novos olhares, com ênfase na visão e linguagem carnavalizadas do mundo às avessas, tão própria de Vadinho, como contraponto ao formalismo do discurso institucionalizado de Teodoro, e quem sabe assim, seremos capazes de construir uma ciência jurídica que não seja insípida e inodora, mas que tenha o aroma e o sabor da culinária de Dona Flor.

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