Eu, pecador




Confesso a Deus, Todo-Poderoso, e a vós, irmãos, que pequei muitas vezes. Não sou de sentir tristeza diante do bem do outro, muito menos de desejar sua apropriação indevida. Mas, um dia desses, quase morri de inveja ao ver uma reportagem sobre a coleta de lixo no Japão. Cada qual responsável pelo lixo que produz, ruas impecavelmente limpas, e, vez por outra, apenas uma pinça para apanhar folhas secas caídas das árvores.  Aqui, porém, parece que perpetuamos a mentalidade dos tempos da escravidão, desde quando, como diz a canção de Gilberto Gil, o branco inventou a mentira de que o negro quando não suja na entrada, vai sujar na saída. Pois, na verdade, era a mão escrava que passava a vida limpando a sujeira que o branco fazia. Emporcalhamos o chão em que vivemos e ainda ficamos com a consciência limpa. Afinal, para que nos serve a mão servil do gari? 

E a pontualidade dos bretões? Diferente deles, somos uma minoria aqueles para os quais, como diz um padre, amigo meu, nove horas são nove horas, dez horas são dez horas, onze horas são onze horas. Até dizem que, em certos casos, chique é ser impontual. Para quem chega na hora marcada, remédio é chá de cadeira servido por atrasados, que nunca se sentem culpados. A coisa é tão séria, que nossa Justiça baixou uma Súmula segundo a qual não é crível um livro de ponto com horário certinho, e o jeitinho de patrões metidos a espertos é mandar preenchê-lo com impontualidade britânica.

Invejo ainda a honradez de quem assume seus próprios erros. Quem de nossos governantes tem a dignidade de fazer o mea culpa diante do povo que lhe dá o poder? Mesmo que não precise chegar ao cúmulo do haraquiri da tradição samurai, autoridade deveria dar exemplo. Mas o ethos que muitas delas alardeiam é o da pusilanimidade disseminada. Se uma alta personalidade se sai com o “não sei de nada”, “assinei, mas não fui eu” e deixa a corda arrebentar do lado do subalterno – afinal, para que serve o assessor? --, não se tem moral para censurar a resposta na ponta da língua de quem diz: “Mas é um pouquinho, doutor, é só pra consumo...”

Longe de mim pensar que sou mais puro que ninguém. Tenho profunda consciência da corrupção original da humana condição, barro comum que a todos  modela. Também sei que nem no Japão, nem em qualquer lugar do planeta, existe um mundo perfeito. Mas não há por que comungar com a proliferação da canalhocracia nacional ou tentar justificá-la com base na indiferença ética.

Por isso, como ainda não me convenci de que tudo só pode se renovar se vier um novo dilúvio, tampouco tenho a presunção de ser um novo Noé, prefiro acreditar no perene aprimoramento da democracia – será preciso uma neo ou uma pós-democracia? --, fundada principalmente no respeito mútuo e na plena educação das novas gerações. 

E mesmo sabendo que uma vida é pouco para colher os frutos, sinto-me feliz em lançar sementes de honradez, pontualidade e cuidado, na terra comum que nos serve de morada temporária, ao mesmo tempo que, realística e humildemente, continuo a repetir: confesso a Deus, Todo-Poderoso,  e a vós, irmãos, que pequei muitas vezes, por pensamentos, palavras, atos e omissões. Por minha culpa, minha tão grande culpa. Eu, pecador.

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