Sangue de nordestino


Na história das lutas contra a opressão e por melhores condições de vida em nosso país, o povo nordestino tem papel de destaque. Manuel Correia de Andrade, no livro Lutas camponesas do Nordeste, lembra que desde o período colonial a história é recheada de eventos que expressam o espírito combativo de nossa gente. Na revolta de cabanos, destaca a atuação de Antônio Timóteo e Vicente Ferreira de Paulo, filho “bastardo” do vigário de Goiana. Conta que na Balaiada os principais líderes eram um vaqueiro, chamado Raimundo Gomes, Preto Cosme, um escravo fugido, além do artesão que fazia balaio, apelido com o qual se tornou conhecido, e que deu nome à insurreição. Menciona ainda a participação de camponeses no ronco da abelha e no quebra-quilos da Paraíba, na revolta dos malês na Bahia, na Praieira em Pernambuco, sem esquecer a ação de cangaceiros e beatos, inspirados na valentia de Antônio Silvino e Lampião, bem como na fé engajada do Padre Cícero do Juazeiro.

Não bastasse digladiar contra a opressão social, nossa gente sempre teve que enfrentar uma antagonista natural de peso: a seca. A história registra, por exemplo, que de 1877 a 1879, o Nordeste foi assolado por uma terrível estiagem, que dizimou cerca de trinta mil pessoas. Foi o aziago 77, cantado nos versos de Rodrigues de Carvalho:

No tempo da seca grande,

Naquela crise maior,

Filho brigava com mãe,

Neto brigava com avó,

Brigavam por coisas boas,

Pelo beiju de potó,

Farinha de barriguda,

Já logrou um bom estado,

Na feira de Guarabira

Um litro por um cruzado.


De 77 p’ra cá,

Nosso Brasil está perdido,

Muito quem toque viola,

Muito rapaz enxerido,

Cavalos equipadores,

Muita mulher sem marido.

E noutros tempos, as mulheres ficavam sem os maridos porque estes tinham que migrar para arranjar do que comer. Foi assim, por exemplo, quando levas de nordestinos embrenharam-se nas matas amazônicas, durante o ciclo da borracha, fato lembrado por José de Freitas Nobre:

Cearense vai ao norte,

Sonhando áureos castelos,

Sai daqui robusto e forte,

Volta magro e amarelo.

E feliz quando voltava! Segundo Eduardo Galeano, estima-se que cerca de meio milhão de nordestinos sucumbiram às epidemias, ao impaludismo, tuberculose e beribéri, “na época do auge da goma. Este sinistro ossário foi o preço da indústria da borracha.”

Mesmo assim continuaram a edificar este imenso país. Viraram candangos na construção de Brasília, ajudaram a abrir a Transamazônica, a fincar no fundo do mar os pilares da Rio-Niterói e a erguer os arranha-céus da Paulista. E ainda hoje continuam, com a graça de Deus, sonhando e pelejando por dias melhores, ainda que tenham de derramar ou suar sangue, sangue de nordestino.

Comentários